Uma Vida Feita de Memória, Beleza e Poesia
As palavras de Heloisa nos remetem à formação de uma geração que aprendeu
a olhar o mundo pela lente da beleza e da palavra. Professora, poeta, ensaísta
e pensadora da linguagem, Heloisa atravessou décadas cultivando o silêncio
criativo e o gesto preciso, fosse na sala de aula, na vida intelectual ou nas
páginas onde resgata o que nos constitui: infância, paisagens, memórias,
exílios e retornos.
Nesta entrevista, Heloisa revela a mulher por trás da escritora: filha de um lar sergipano que chegou ao sul da Bahia buscando sonhos; jovem que viveu Itabuna e Salvador nos anos de efervescência cultural; mãe, esposa, professora e amiga.
Mais do que responder perguntas, Heloisa compartilha sua visão de mundo, construída com poesia, mas também com rigor, ética e sensibilidade. Entre memórias de infância, referências literárias, reflexões sobre dor e beleza, e a defesa de valores fundamentais, ela nos lembra que viver é criar, e que a poesia não é apenas um gênero, mas uma maneira de existir no mundo.
Raquel Rocha
Raquel- Antes de falarmos sobre sua trajetória literária, queria que você
contasse quem é a pessoa por trás da escritora: quem é Heloisa Prazeres em sua
essência?
Heloisa- Entendo que a minha personalidade deriva de um lar harmonioso, formado por meus pais, Agrícola Santana Prata e Alzira de Oliveira Prata, família oriunda do estado de Sergipe, primeiros imigrantes, atraídos pela notícia do Eldorado no Sul da Bahia.
A consolidação de minha adolescência — final dos anos 1950-1960– deu-se na
cidade natal, Itabuna, Ba. Lugar, então, próspero, economia criativa e pioneira
no cultivo das roças de Cacau, que conheci como lugar referencial, fazendas de
meu tio Raimundo de Oliveira Cruz.
Por iniciativa de meus pais, ambos conscientes da importância da educação, sou
fruto da educação formal do Colégio Ação Fraternal de Itabuna e, musicalmente,
do coral da maestrina Profª Zélia Lessa e das Professoras de piano Gladys e
Lourdes Dantas. Recordo, em minha adolescência, os espetáculos colegiais da
cidade, as apresentações de canto regidas pela Professora Maestrina Zélia
Lessa, a quem devo a iniciação musical.
Então, fascinavam-me as canções folclóricas, considerava encantatória a mistura entre as palavras e as sonoridades, embora não alcançasse esclarecer bem sua complexidade. Peças do folclore nacional, notadamente de Villa Lobos.
Nos verões desta citada faixa de tempo, fui habitante temporária da paisagem da
Mata Atlântica Costeira, frequentei Olivença, Pontal de Ilhéus e Barra de
Itaípe, acompanhada pelos meus pais, irmãos, avós, tios e primos da família
Oliveira João Manuel e Georgina Oliveira Cruz.
Outras opções, às quais me foi dado acesso, o Centro Cultural da cidade, onde
ouvia e assistia, em arrebatada suspensão, ao poder da oratória e da recitação
de poetas condoreiros. Pela primeira vez, ouvi a voz de nomes baianos de
impacto nacional, especialmente o fervor e lustre das Espumas flutuantes, de
Castro Alves. Como tinha não muito mais que uma dezena de anos, e ali era
levada pela sede de conhecimento de outro dos meus mentores, João Martins de
Oliveira, meu tio, era a atmosfera e a musicalidade que permanenciam,
formando-me o gosto e fazendo emergir o prazer da convivência e a talvez
prematura indagação sobre arte, poesia e vida criativa. Ali escutei fascinada
versos do poeta da cidade, Firmino Rocha, de sua hoje coleção, O canto do dia
novo. Ali ouvi sonetos majestosos do grande Sosígenes Costa, nosso bardo maior.
Esses são feitos, fatos, pessoas e lugares que me constituíram na infância e
adolescência.
Poeticamente, fiz o registro desta pequena história e do meu precoce gosto
literário:
Diáspora ao
Sul da Bahia
A Georgina
e Luís Manoel Oliveira Cruz
com essa
luz de olhos já antigos
acolho o
legado de adereços
(no
trânsito do clã dos Oliveira)
herdei
candeias de janelas móveis
de leves ou
maciços parapeitos
déco
importado de além-mar
frisos de
envieses e ornamentos
colho o
saber da estirpe nortista
do feudo de
Georgina e Luís
(coleção de
memórias rurais)
primeiro a
dispersão e o rumo
a outro
destino − novo estado
nas pegadas
de Sumé ao eldorado
matriarcas
aurora Alzira Amélia
meninas
gêmeas Lourdes/ Louralina
caçula Sula como o nome
viajante de olhos capitais
na
arribação fora determinado
avós
deixaram sítios das suas terras
nortistas
rumo ao dourado porto
do
jequitibá
sementes do
fruto pariram burgos
(Tabocas
Almadina Arataca
Água Preta
Camacã Itajuípe)
e a razão
marginal: um topônimo Tupi
pedra preta
lar Itabuna
ouro antigo
de cascas brunidas
Raquel- Quando
foi que a literatura entrou em sua vida? Lembra do primeiro livro que leu e lhe
marcou?
Heloisa: No
alvorecer da década de 1960 e visando ao aprimoramento dos nossos estudos,
minha família veio para Salvador. Vivemos no bairro dos Barris. Meu pai
deslocando-se para a cidade baixa, para a matriz do Banco da Bahia, para onde
viera transferido, e minha mãe a experimentar mais um deslocamento na sua já
assinalada experiência de exílios. Sua alma revelava a angústia das separações,
daí a presença da poesia, o gosto pela declamação e pelo canto, em sua linda
voz de contralto. Talvez daí o meu gosto secundário pela música. Vivendo em
Salvador, a partir de 1961, Estudei no Colégio Severino Vieira, onde alcancei a
aproximação do coral da instituição e do reclamo de aperfeiçoamento do gosto
artístico e literário, tendo como Professora de português Dona Belmira, leitora
de Os Lusíadas, de Luís de Camões, educando-nos pelo ouvido.
Poucos anos depois, no colégio Central da Bahia, à época ainda um celeiro de
novidades − conheci a geração seguinte à que promovera o histórico processo de
renovação e conceituação vanguardista da cidade de Salvador. Minha casa, as
mais duradouras amizades, o centro de minha juvenil emoção, encontra-se
derramado nas experiências de acesso aos espaços culturais de então: sessões do
cinema de arte do Cine Guarani, no coração da cidade, em frente à Praça Castro
Alves; frequência ao teatro Vila Velha, que marcou o momento cultural
brasileiro e albergou movimentos sociais; auditório da Reitoria da Universidade
Federal da Bahia, espaço de intensa movimentação e divulgação culturais,
conferências, debates, recitais, concertos e simpósios; Livraria e Editora Progresso,
única editora baiana, a publicar textos· de ciências sociais, filosofia,
ensaios literários, romances e livros de poesia. Por meio das edições dessa
livraria e secundando os passos de meu irmão, poeta Alitano, Renato de Oliveira
Prata, fui formando e aprimorando o meu gosto literário, iniciado nas estantes
familiares da minha família de leitores.
Raquel- Além da escrita, que outras paixões ou interesses fazem parte da sua
vida?
Encontro-me naturalmente ligada à área de Letras e Artes. Em verdade não
tenho outro forte interesse, senão os versos livres, plenos de ritmo,
musicalidade, plasticidade. Gosto de ler, de experimentar, crio efeitos
sinestésicos, com o entrecruzamento de sensações e sentidos nos planos
semântico e sintático. A pulsação da vida em algum momento alcança voo, por
meio da musicalidade que imprimo aos versos. Portanto, poesia, leitura e
música.
Raquel- Há algo que você goste profundamente — e algo que não goste muito?
Sim. Gosto muito de ler me acalma e me auxilia no processo imaginativo, bem
como aumenta a minha capacidade de memorização, pois gosto muito de recitação.
Caminhar, estar em contato com a natureza, me permite refletir. Cinema, Teatro
são expressões de arte que muito aprecio, bem como a música, que me ajuda na
escrita, na recordação e no registro de pensamentos e percepções. Valorizo a
conversa com amigos e o tempo de intimidade e solidão. Por outro lado, não
gosto de eventos sociais de grandes proporções. Canso-me e desejo seu rápido
desfecho.
Raquel- Se tivesse que descrever sua personalidade em poucas palavras, como
se definiria?
Creio que sou uma mistura de pessoa comunicativa, mas também sensível e
intuitiva . As pessoas me consideram intelectual e emocional ao mesmo tempo.
Raquel- Você se recorda de algum conselho que recebeu e que a acompanha até
hoje?
Vivi a juventude na década de sessenta, prezo a liberdade e a justiça social.
Meu tempo foi marcado por grandes mudanças sociais e culturais. Pessoalmente,
admiro e conservo conselhos e valores de liberdade e busca por novas
experiências. Também fui principalmente aconselhada a valorizar a autenticidade
e procurar a realização pessoal por minha mãe e por minhas muitas tias. Não me
afasto muito desta visão de mundo.
Raquel- Em sua trajetória, houve algum momento de desafio que a marcou
profundamente? Como o superou?
Sim. Vivi nos EUA a experiência da incomunicabilidade, o luto moral das desavenças entre raças. Como brasileira, creio nas amplas relações inclusivas e miscigenadas. A minha herança cultural e as convicções que defendo, sempre me ajudaram na superação desses choques culturais.
Raquel- Que temas ou preocupações mais atravessam sua obra?
A minha poesia aborda temas universais. Ressalto o amor, a amizade, a
maternidade, perdas, deslocamentos, a relativa incomunicabilidade, o luto
moral, a história, a natureza, o mundo digital, as relações possíveis na
contemporaneidade e a globalização. As ideias resultam da minha vivência social
e intelectual com base nas percepções da cidadã, poeta, mulher, docente e
intelectual. Há um apelo de imagens e temas próprios dessas vivências. Lembro,
ainda, que a poesia está do lado do ser e contra o seu aniquilamento.
Cito o verso de Hölderlin, presente no poema Recordação: O que resta, porém,
fundam-no os poetas.
Raquel- Quando escreve, busca mais expressar o que sente ou compreender o
mundo ao seu redor?
A linguagem poética, em verdade, ultrapassa a função comunicativa,
transformando-se em objeto artístico, mediante o desvio e a contaminação
semântica, ou seja, poesia implica texto onde a linguagem é explorada em todas
as suas dimensões. A subjetividade será sempre filtrada pela intencionalidade.
Mas como escritora do gênero lírico, posso dizer que a minha escrita é o
esforço de uma individualidade feminina na direção daquilo que me cerca. Como
disse Theodor Adorno, a dimensão subjetiva está apegada à expressão lírica,
tanto quanto a sociedade, ou seja, embora pareça distante da esfera social, a
lírica, na verdade, carrega em si as marcas da experiência socialmente
experimentada.
Raquel- Como vê a relação entre dor e beleza na criação literária?
Desde a modernidade, a beleza não mais se limita ao ideal clássico. Hoje,
a busca pela beleza não dispensa o transitório ou o circunstancial; a relação
entre dor e beleza é de complementaridade e interdependência.
Não mais um obstáculo à beleza, a dor torna-se um meio de alcançá-la, revelando
novas dimensões da experiência humana. Por exemplo, na poesia de Cecília
Meireles, há uma relação complexa e paradoxal. A poeta explora a beleza
presente no sofrimento, na decadência, elevando o desgosto e as mais humanas condições
a distintos patamares temáticos. Porque a poesia é necessária mesmo em tempos
de guerra.
Raquel- O que significa, para você, ser poeta em um mundo tão acelerado como
o nosso?
Ser poeta exige o encontro e a demonstração de que há espaço para a
reflexão e a expressão da sensibilidade, sempre e em quaisquer circunstâncias.
Será necessária a dedicação ao tempo da escrita e da leitura e, mais das vezes,
será possível encontrar momentos de quietude para a observação. No mundo
contemporâneo, a atividade da poesia é de transformação, ou seja, a mudança do
cotidiano em arte, em momentos simples do dia a dia que se transformem em
poemas. O poeta confronta a dificuldade; cultiva a observação do cotidiano;
observa a vida com um olhar interrogativo e questionável e encontra a natureza,
nela reconhecendo fontes de observação (seus ciclos, cores e sons). Afinal, os
filósofos compreendem a necessidade e incentivam a prática da poesia mesmo em
tempos de guerra.
Raquel- Que valores ou princípios considera essenciais para a vida?
Na qualidade de cidadã, consciente da importância da vida em sociedade, comungo
com o sistema estabelecido com a finalidade de possibilitar socialmente a vida,
a saber, basicamente: honestidade, respeito, justiça, liberdade e amor.
Uma vez que encontro significado na experiência da vida e construo a minha
visão impressa em tudo aquilo que publico, em verdade, com base nessa
experiência, de mais de quarenta anos de trabalho, posso admitir o sentido da
vida como criação, ou seja, uma vida cuja razão e significado têm sido dados pela poesia, que assino. Entendendo-se, portanto, que a poesia não compreende
apenas um determinado gênero, mas, também, um esforço “poiético” de
transfiguração da existência em formas ou da metamorfose da experiência
existencial em palavras. Minha relação com o mundo e comigo mesma, o sentido da
vida, liga-se à capacidade autoral de inventar, divulgar e tocar o mundo por
meio da arte.
Salvador, 01/07/2025
Heloísa
Prata e Prazeres