ENTREVISTA COM HELOISA PRAZERES- Por Raquel Rocha

 Uma Vida Feita de Memória, Beleza e Poesia


As palavras de Heloisa nos remetem à formação de uma geração que aprendeu a olhar o mundo pela lente da beleza e da palavra. Professora, poeta, ensaísta e pensadora da linguagem, Heloisa atravessou décadas cultivando o silêncio criativo e o gesto preciso, fosse na sala de aula, na vida intelectual ou nas páginas onde resgata o que nos constitui: infância, paisagens, memórias, exílios e retornos.

Nesta entrevista, Heloisa revela a mulher por trás da escritora: filha de um lar sergipano que chegou ao sul da Bahia buscando sonhos; jovem que viveu Itabuna e Salvador nos anos de efervescência cultural; mãe, esposa, professora e amiga.

Mais do que responder perguntas, Heloisa compartilha sua visão de mundo, construída com poesia, mas também com rigor, ética e sensibilidade. Entre memórias de infância, referências literárias, reflexões sobre dor e beleza, e a defesa de valores fundamentais, ela nos lembra que viver é criar, e que a poesia não é apenas um gênero, mas uma maneira de existir no mundo.

Raquel Rocha



Raquel- Antes de falarmos sobre sua trajetória literária, queria que você contasse quem é a pessoa por trás da escritora: quem é Heloisa Prazeres em sua essência?

Heloisa- Entendo que a minha personalidade deriva de um lar harmonioso, formado por meus pais, Agrícola Santana Prata e Alzira de Oliveira Prata, família oriunda do estado de Sergipe, primeiros imigrantes, atraídos pela notícia do Eldorado no Sul da Bahia.

A consolidação de minha adolescência — final dos anos 1950-1960– deu-se na cidade natal, Itabuna, Ba. Lugar, então, próspero, economia criativa e pioneira no cultivo das roças de Cacau, que conheci como lugar referencial, fazendas de meu tio Raimundo de Oliveira Cruz.

Por iniciativa de meus pais, ambos conscientes da importância da educação, sou fruto da educação formal do Colégio Ação Fraternal de Itabuna e, musicalmente, do coral da maestrina Profª Zélia Lessa e das Professoras de piano Gladys e Lourdes Dantas. Recordo, em minha adolescência, os espetáculos colegiais da cidade, as apresentações de canto regidas pela Professora Maestrina Zélia Lessa, a quem devo a iniciação musical.

Então, fascinavam-me as canções folclóricas, considerava encantatória a mistura entre as palavras e as sonoridades, embora não alcançasse esclarecer bem sua complexidade. Peças do folclore nacional, notadamente de Villa Lobos.

Nos verões desta citada faixa de tempo, fui habitante temporária da paisagem da Mata Atlântica Costeira, frequentei Olivença, Pontal de Ilhéus e Barra de Itaípe, acompanhada pelos meus pais, irmãos, avós, tios e primos da família Oliveira João Manuel e Georgina Oliveira Cruz.

Itabuna, no final dos anos 50, era esse burgo de vocação agro-comercial; quem tinha alguma atividade criativa beneficiava-se dos eventos promovidas pelas quermesses juninas e natalinas, mais das vezes sob a liderança do historiador popular, agitador cultural, meu saudoso tio, José Dantas de Andrade.

Outras opções, às quais me foi dado acesso, o Centro Cultural da cidade, onde ouvia e assistia, em arrebatada suspensão, ao poder da oratória e da recitação de poetas condoreiros. Pela primeira vez, ouvi a voz de nomes baianos de impacto nacional, especialmente o fervor e lustre das Espumas flutuantes, de Castro Alves. Como tinha não muito mais que uma dezena de anos, e ali era levada pela sede de conhecimento de outro dos meus mentores, João Martins de Oliveira, meu tio, era a atmosfera e a musicalidade que permanenciam, formando-me o gosto e fazendo emergir o prazer da convivência e a talvez prematura indagação sobre arte, poesia e vida criativa. Ali escutei fascinada versos do poeta da cidade, Firmino Rocha, de sua hoje coleção, O canto do dia novo. Ali ouvi sonetos majestosos do grande Sosígenes Costa, nosso bardo maior.
Esses são feitos, fatos, pessoas e lugares que me constituíram na infância e adolescência.

Poeticamente, fiz o registro desta pequena história e do meu precoce gosto literário:

Diáspora ao Sul da Bahia

A Georgina e Luís Manoel Oliveira Cruz

com essa luz de olhos já antigos

acolho o legado de adereços

(no trânsito do clã dos Oliveira)

herdei candeias de janelas móveis

de leves ou maciços parapeitos

déco importado de além-mar

frisos de envieses e ornamentos

colho o saber da estirpe nortista

do feudo de Georgina e Luís

espelho-me em retinas centenárias

(coleção de memórias rurais)

primeiro a dispersão e o rumo

a outro destino − novo estado

nas pegadas de Sumé ao eldorado

matriarcas aurora Alzira Amélia

meninas gêmeas Lourdes/ Louralina

caçula Sula como o nome

viajante de olhos capitais

na arribação fora determinado

avós deixaram sítios das suas terras

nortistas rumo ao dourado porto

do jequitibá

sementes do fruto pariram burgos

(Tabocas Almadina Arataca

Água Preta Camacã Itajuípe)

e a razão marginal: um topônimo Tupi

pedra preta lar Itabuna

ouro antigo de cascas brunidas

 

Raquel- Quando foi que a literatura entrou em sua vida? Lembra do primeiro livro que leu e lhe marcou?

Heloisa: No alvorecer da década de 1960 e visando ao aprimoramento dos nossos estudos, minha família veio para Salvador. Vivemos no bairro dos Barris. Meu pai deslocando-se para a cidade baixa, para a matriz do Banco da Bahia, para onde viera transferido, e minha mãe a experimentar mais um deslocamento na sua já assinalada experiência de exílios. Sua alma revelava a angústia das separações, daí a presença da poesia, o gosto pela declamação e pelo canto, em sua linda voz de contralto. Talvez daí o meu gosto secundário pela música. Vivendo em Salvador, a partir de 1961, Estudei no Colégio Severino Vieira, onde alcancei a aproximação do coral da instituição e do reclamo de aperfeiçoamento do gosto artístico e literário, tendo como Professora de português Dona Belmira, leitora de Os Lusíadas, de Luís de Camões, educando-nos pelo ouvido.

Poucos anos depois, no colégio Central da Bahia, à época ainda um celeiro de novidades − conheci a geração seguinte à que promovera o histórico processo de renovação e conceituação vanguardista da cidade de Salvador. Minha casa, as mais duradouras amizades, o centro de minha juvenil emoção, encontra-se derramado nas experiências de acesso aos espaços culturais de então: sessões do cinema de arte do Cine Guarani, no coração da cidade, em frente à Praça Castro Alves; frequência ao teatro Vila Velha, que marcou o momento cultural brasileiro e albergou movimentos sociais; auditório da Reitoria da Universidade Federal da Bahia, espaço de intensa movimentação e divulgação culturais, conferências, debates, recitais, concertos e simpósios; Livraria e Editora Progresso, única editora baiana, a publicar textos· de ciências sociais, filosofia, ensaios literários, romances e livros de poesia. Por meio das edições dessa livraria e secundando os passos de meu irmão, poeta Alitano, Renato de Oliveira Prata, fui formando e aprimorando o meu gosto literário, iniciado nas estantes familiares da minha família de leitores.


Raquel- Como foi o início da sua trajetória acadêmica e literária?

No curso de Letras Vernáculas, com Inglês, da Universidade Federal da Bahia, UFBA, e, muito na sequência, após o Bacharelado, fui monitora junto à cadeira de Literatura Portuguesa, a convite dos saudosos mestres Hélio Simões, conquistador de audiências pela singular recitação da Cantigas de Amigo e Amor da tradição ibérica, e da saudosa Jerusa Pires Ferreira, ambos me incentivaram à concorrência ao ingresso no Departamento de Vernáculas. Concomitantemente, na Universidade Católica de Salvador, onde, como jovem professora, convivi com duas mestras da língua e literatura nacional, Joselita Castro Lima e Terezinha Moreira. Literariamente, nos anos 1970, e em companhia de Jamison Pedra, meu esposo, já falecido, companheiro de mais de meio século, escrevi os versos que constaram do desfecho da película/ curta-metragem “Caranguejomem”, que logrou o 5° Prêmio Nacional no Festival Brasileiro de Cinema Amador (Jornal do Brasil). Incentivada pelos mestres aqui citados, produzi os primeiros artigos, publicados no Suplemento de Cultura do Jornal Tribuna da Bahia. Em meados dos anos 1970, comecei a perceber e a assumir com mais consciência um papel intelectual, como escritora e também Professora do Curso de Graduação em Letras. Tal perspectiva, dirigiu-me ao comparativismo, orientada pelos saudosos mestres, Cláudio Veiga, Antônio Barros, Davi Salles e Ildásio Tavares; tal escolha viria a tornar-se a metodologia de trabalhos futuros, desenvolvidos nos cursos de pós-graduação, dentro e fora do país, quando me foi dada a experiência de viver, no gelado centro-oeste norte-americano, na cidade de Cincinnati, EUA. Então, professora universitária baiana, com minha família, já no formato que permanece, vivemos com nossos três filhos, Letícia, Ana e Daniel, em idades entre doze e dois anos. Na vigência do curso, fui orientada pelos mestres, Edward Coughlin, Juan Valencia e pelo hispanista Donald Bleznak. Essa experiência foi recolhida em alguns poemas.

 
Raquel- Além da escrita, que outras paixões ou interesses fazem parte da sua vida?

Encontro-me naturalmente ligada à área de Letras e Artes. Em verdade não tenho outro forte interesse, senão os versos livres, plenos de ritmo, musicalidade, plasticidade. Gosto de ler, de experimentar, crio efeitos sinestésicos, com o entrecruzamento de sensações e sentidos nos planos semântico e sintático. A pulsação da vida em algum momento alcança voo, por meio da musicalidade que imprimo aos versos. Portanto, poesia, leitura e música.


Raquel- Há algo que você goste profundamente — e algo que não goste muito?

Sim. Gosto muito de ler me acalma e me auxilia no processo imaginativo, bem como aumenta a minha capacidade de memorização, pois gosto muito de recitação. Caminhar, estar em contato com a natureza, me permite refletir. Cinema, Teatro são expressões de arte que muito aprecio, bem como a música, que me ajuda na escrita, na recordação e no registro de pensamentos e percepções. Valorizo a conversa com amigos e o tempo de intimidade e solidão. Por outro lado, não gosto de eventos sociais de grandes proporções. Canso-me e desejo seu rápido desfecho.


Raquel- Se tivesse que descrever sua personalidade em poucas palavras, como se definiria?

Creio que sou uma mistura de pessoa comunicativa, mas também sensível e intuitiva . As pessoas me consideram intelectual e emocional ao mesmo tempo.



Raquel- Você se recorda de algum conselho que recebeu e que a acompanha até hoje?

Vivi a juventude na década de sessenta, prezo a liberdade e a justiça social. Meu tempo foi marcado por grandes mudanças sociais e culturais. Pessoalmente, admiro e conservo conselhos e valores de liberdade e busca por novas experiências. Também fui principalmente aconselhada a valorizar a autenticidade e procurar a realização pessoal por minha mãe e por minhas muitas tias. Não me afasto muito desta visão de mundo.


 
Raquel- Em sua trajetória, houve algum momento de desafio que a marcou profundamente? Como o superou?

Sim. Vivi nos EUA a experiência da incomunicabilidade, o luto moral das desavenças entre raças. Como brasileira, creio nas amplas relações inclusivas e miscigenadas. A minha herança cultural e as convicções que defendo, sempre me ajudaram na superação desses choques culturais.

 
Raquel- Que temas ou preocupações mais atravessam sua obra?

A minha poesia aborda temas universais. Ressalto o amor, a amizade, a maternidade, perdas, deslocamentos, a relativa incomunicabilidade, o luto moral, a história, a natureza, o mundo digital, as relações possíveis na contemporaneidade e a globalização. As ideias resultam da minha vivência social e intelectual com base nas percepções da cidadã, poeta, mulher, docente e intelectual. Há um apelo de imagens e temas próprios dessas vivências. Lembro, ainda, que a  poesia está do lado do ser e contra o seu aniquilamento. Cito o verso de Hölderlin, presente no poema Recordação: O que resta, porém, fundam-no os poetas.


Raquel- Quando escreve, busca mais expressar o que sente ou compreender o mundo ao seu redor?

A linguagem poética, em verdade, ultrapassa a função comunicativa, transformando-se em objeto artístico, mediante o desvio e a contaminação semântica, ou seja, poesia implica texto onde a linguagem é explorada em todas as suas dimensões. A subjetividade será sempre filtrada pela intencionalidade.
Mas como escritora do gênero lírico, posso dizer que a minha escrita é o esforço de uma individualidade feminina na direção daquilo que me cerca. Como disse Theodor Adorno, a dimensão subjetiva está apegada à expressão lírica, tanto quanto a sociedade, ou seja, embora pareça distante da esfera social, a lírica, na verdade, carrega em si as marcas da experiência socialmente experimentada.
 



Raquel- Como vê a relação entre dor e beleza na criação literária?

 Desde a modernidade, a beleza não mais se limita ao ideal clássico. Hoje, a busca pela beleza não dispensa o transitório ou o circunstancial; a relação entre dor e beleza é de complementaridade e interdependência.
Não mais um obstáculo à beleza, a dor torna-se um meio de alcançá-la, revelando novas dimensões da experiência humana. Por exemplo, na poesia de Cecília Meireles, há uma relação complexa e paradoxal. A poeta explora a beleza presente no sofrimento, na decadência, elevando o desgosto e as mais humanas condições a distintos patamares temáticos. Porque a poesia é necessária mesmo em tempos de guerra.



Raquel- O que significa, para você, ser poeta em um mundo tão acelerado como o nosso?

Ser poeta exige o encontro e a demonstração de que há espaço para a reflexão e a expressão da sensibilidade, sempre e em quaisquer circunstâncias. Será necessária a dedicação ao tempo da escrita e da leitura e, mais das vezes, será possível encontrar momentos de quietude para a observação. No mundo contemporâneo, a atividade da poesia é de transformação, ou seja, a mudança do cotidiano em arte, em momentos simples do dia a dia que se transformem em poemas. O poeta confronta a dificuldade; cultiva a observação do cotidiano; observa a vida com um olhar interrogativo e questionável e encontra a natureza, nela reconhecendo fontes de observação (seus ciclos, cores e sons). Afinal, os filósofos compreendem a necessidade e incentivam a prática da poesia mesmo em tempos de guerra. 



Raquel- Que valores ou princípios considera essenciais para a vida?

Na qualidade de cidadã, consciente da importância da vida em sociedade, comungo com o sistema estabelecido com a finalidade de possibilitar socialmente a vida, a saber, basicamente: honestidade, respeito, justiça, liberdade e amor.


Para você, qual o sentido da vida ?

Uma vez que encontro significado na experiência da vida e construo a minha visão impressa em tudo aquilo que publico, em verdade, com base nessa experiência, de mais de quarenta anos de trabalho, posso admitir o sentido da vida como criação, ou seja, uma vida cuja razão e significado têm sido dados pela poesia, que assino. Entendendo-se, portanto, que a poesia não compreende apenas um determinado gênero, mas, também, um esforço “poiético” de transfiguração da existência em formas ou da metamorfose da experiência existencial em palavras. Minha relação com o mundo e comigo mesma, o sentido da vida, liga-se à capacidade autoral de inventar, divulgar e tocar o mundo por meio da arte.



Salvador, 01/07/2025

Heloísa Prata e Prazeres

 

A memória é semente de pertencimento- Entrevista com Clóvis Júnior

 

E N T R E V I S T A

“A memória é semente de pertencimento.”

Nascido em Ibicaraí, Clóvis Silveira Góis Júnior construiu uma trajetória que entrelaça fé, memória, serviço e palavra. Leitor voraz, pesquisador dedicado, servidor público da Justiça do Trabalho há mais de três décadas e profundo conhecedor da história da região cacaueira, Clóvis é alguém que escreve para que o tempo não apague e para que as novas gerações saibam de onde vieram.

Casado com a pedagoga Iara Souza Setenta Góis e pai de Felipe e João Marcos, sua vida familiar é espelho daquilo que aprendeu na infância: valores como respeito, honestidade, solidariedade e temor a Deus. Esses mesmos princípios estão presentes em seus livros, nos perfis digitais que administra, como o @historiagrapiuna, e nos tantos registros que vem produzindo com esmero e constância.

Autor de A Gênese do Adventismo Grapiúna (2016), Sequeiro do Espinho: passos de um conflito (2020) e A História de Itabuna em 1.300 eventos cronológicos e ilustrados (2025), ele ocupa a cadeira nº 34 da Academia de Letras de Itabuna (ALITA), cujo patrono é o jornalista, político e escritor Jorge Calmon.

Nesta entrevista, a mim concedida com a dedicação que lhe é característica, Clóvis revela lembranças vívidas da infância em Palestina (Ibicaraí), fala sobre o papel da fé em sua formação, da influência dos pais, do amor pela história, da sua devoção à verdade, e da certeza de que “quem não vive para servir, não serve para viver”. O resultado é um retrato bonito e sincero de um homem que se comprometeu a deixar como legado não apenas livros, mas exemplos.

 Raquel Rocha


Raquel Rocha (RR): Clóvis, você nasceu em Ibicaraí, mas carrega consigo todo um território simbólico da Região Grapiúna. Que imagens ou memórias da infância mais marcaram sua trajetória de vida?

Clóvis Júnior (CJ): Eu sou um pouco de tudo que vivi na meninice. Fragmentos de minha infância teimam em brotar nas minhas reflexões e ações. Pedaços do meu passado saltam a todo instante no meu caminho. Louvo ao Eterno por serem reminiscências aprazíveis e saudáveis. A feira livre da antiga Palestina. Os animais de carga descansando num curral circunvalado entre o leito do rio e o fundo do edifício do Cine Teatro Ana; esse redil, guardava as bestas, enquanto seus proprietários negociavam seus pertencentes na feira. Naquele ambiente vi e aprendi coisas inimagináveis para crianças de tenra idade. A beira do rio Salgado, principalmente em momentos de cheias, entre os meses de novembro e janeiro. O jogo de bola em campos improvisados e em locais ermos (futebol de várzea), onde quase sempre eu era o goleiro ou, quando dono da bola, poderia até ser convocado para jogar na linha. O cheiro do cacau mole nos cochos ou das amêndoas a secar na barcaça de pequena propriedade rural da família. O banho no ribeirão do Luxo, corrente d'água cristalina, piscosa e doce. A chuva intensa, quase o ano todo, a ponto de fazer suar as telhas de barro. As noites eram belíssimas, frescas, cheirosas, com mantos verdes de gafanhotos sobre os postes, atraídos pela energia elétrica, e mantos luminares de pirilampos (hoje quase extintos) a imitarem, na terra, estrelas do céu. Me pego ainda ouvindo os antigos conversando suas experiências, suas aventuras, suas mágoas, suas bravatas …

 

RR: Seu discurso de posse na ALITA traz um tom confessional e poético. Nele, você fala do cheiro do cacau seco, da jaca madura e da terra molhada. Que significado esses elementos têm na sua construção pessoal e literária?

CJ: Eu projeto o mundo hodierno, com base no meu antigo quintal. Aquele início comezinho e pueril delineou minha vida quase que por completo, deixando pouco espaço para adições do presente. Construo minha estrada dando passos para frente e também olhando para trás. Neste ponto penso como o poeta Manoel de Barros: “Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos”.

 

RR: Como sua família, especialmente, seus pais contribuíram para a formação do seu caráter e do seu olhar sobre o mundo?

CJ: Não consigo entender ou divisar um mundo justo e saudável sem que todos seus participantes exerçam princípios éticos. Aprendi em casa, no seio da família, o respeito, a lealdade, a honestidade, a equidade, o amor ao próximo, a solidariedade, o temor a Deus etc. Nunca ouvi meus pais pronunciarem qualquer palavra torpe, nunca. Uma certa feita, acompanhando meu pai à feira, encontrei, embolado no chão, uma nota de um cruzeiro. Meus olhos brilharam de alegria, prontamente meu pai ordenou que deixasse a cédula onde estava, pois o dono poderia vir ao seu encontro; tirando outra nota idêntica do bolso me restituiu aqueloutra. Pode existir um mulher-mãe igual a minha em zelo, trabalho, honestidade e preocupação com a prole, duvido que no universo inteiro exista outra maior. Não recebi um único bem material deles, nenhuma herança físico-monetária, porém seus princípios suplantam a tudo.

 

RR: Em que momento a fé e o amor pela história começaram a caminhar juntos na sua vida?

CJ: Em 2016, com a escrita do meu primeiro livro.

 

RR: O que mais o motivou a escrever A Gênese do Adventismo Grapiúna ?

CJ: A lacuna na historiografia. O Movimento Adventista estava presente na Região Cacaueira desde 1908, sem que existisse um escrito que relatasse a incursão dos primeiros missionários sabatistas nas roças de cacau.

 

RR: Em um depoimento seu sobre a Gênese do Adventismo Grapiúna, você afirmou que “cada pioneiro que morria levava parte da nossa história para o túmulo”. De onde vem esse impulso por registrar o que poderia ser esquecido?

CJ: Em minhas pesquisas, descobri fatos que ninguém conhecia, tanto no universo de membros da Igreja Adventista  (7.000 membros em Itabuna e 5.000 em Ilhéus), como na Região Cacaueira (centenas de milhares de habitantes). Histórias interessantíssimas, curiosíssimas e importantíssimas (de propósito utilizo o superlativo absoluto) caíram na vala do tempo ou foram sepultadas pela areia da história. Imbróglios políticos e sociais enormes seriam entendidos – e quiçá, resolvidos – se soubéssemos suas origens. Mas suas gêneses não mais existem. É necessário conhecer o passado para se responder perguntas e questões do presente. Se seus atores e protagonistas morrem, sem registrar ou contar o que ocorreu ou como aconteceu, e aí como fica?

 

RR: Como você percebe o papel da escrita como meio de resgate identitário e espiritual dentro da sua fé adventista?

O membro de qualquer denominação religiosa somente consegue amar e se esmerar em seu mister quando conhece aquele sacerdócio. Como dedicar sua vida, seu tempo, seu talento, e seu dinheiro em algo vazio que não sabe de onde veio nem para onde vai? Você só ama verdadeiramente aquilo que conhece. Eu amo a Cristo porque sei o que fez por mim, que abdicou do trono do universo, que se fez homem e quedou-se numa rude cruz em meu favor. Como não amar alguém que me ama tanto? Assim acontece do ponto de vista terreno. Você só ama aquela agremiação que se sente pertencente. Aí entra o conhecimento histórico. O conhecimento do processo formativo do Movimento. A missão e o alvo que o grupo iniciador fomentava. Que caminhos trilharam os pais adventistas para implantarem o Movimento no mundo e aqui na Região? Por que se submeteram a vir para um local extremamente perigoso e de difícil acesso? Que base bíblica possuíam para sustentar seus discursos? Qualquer fiel que conhece sua origem tende a ser um adorador de proa.

 


RR: O perfil @historiagrapiuna, no Instagram, tem sido um canal de educação histórica no ambiente digital. Como nasceu esse Projeto?

CJ: Da inexistência no Instagram de um perfil que se preocupasse com nossa rica história.  Surgiu durante o período da Pandemia da Covid-19, na minha ociosidade laborativa pecuniária. Hoje (maio/2025), são 11.000 seguidores. Considero um grande feito, em se tratando de um espaço que se ocupa da História, Memória, Literatura e Arte Regional Cacaueira.

 

RR: Você é um leitor atento e grato aos autores da Literatura Grapiúna. Que nomes mais o influenciaram e por quê?

CJ: Elencar nomes é certamente perigoso, corro risco de cometer graves injustiças. Mas, vejamos:

João da Silva Campos, que se preocupou em aglutinar registros hemerográficos regionais; Jorge Amado, o paladino da verve e dos tipos humanos grapiúnas; Cyro de Mattos, a maior representação viva da Literatura Cacaueira; Hélio Pólvora, um mágico das crônicas; Euclides Neto, cujos escritos falam da vida, da gente comum e ainda exalam a justiça social; Adylson Machado, dono de um vocabulário consistente e de uma escrita refinada; Sosígenes Costa, dificilmente surgirá outro igual.

 

RR: Você ocupa a cadeira 34 da ALITA, cujo patrono é Jorge Calmon. Poderia falar um pouco sobre seu patrono?

CJ: Calmon é baiano, nascido em Salvador, em 1915. Foi jornalista, político, escritor, historiador e professor. Escreveu e promoveu a cultura com afinco, a ponto de ser reconhecido como o último grande mecenas baiano quando nos deixou, em 18 de dezembro de 2006. Atuou no Jornal A Tarde, Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Academia de Letras da Bahia, Associação Baiana de Imprensa, Tribunal de Contas do Estado da Bahia e Assembleia Legislativa da Bahia. Estas são suas obras publicadas em vida: Sua bibliografia inclui: A Flotilha Itaparicana, Problemas da  Indústria do Jornal, Manoel Quirino, político e jornalista, Grã Colômbia Vista e Comentada: Notas de um cronista às vezes indiscreto, Imprensas Oficiais no Brasil: Aspectos de sua história e seu  presente, Conceito de História, A cara dos fatos, As Estradas Correm para o Sul: A migração nordestina  para São Paulo, Promessas se Pagam com Pedra e Cal:  Crônicas de viagem, Santo Amaro: Devoção de José Silveira e A Revolução Americana.


 RR: Que papel sua família tem na sua caminhada?

CJ: A importância benévola dos meus pais foi imensa. É aflitivo para o ser humano não ter sido oriundo de uma família equilibrada que lhe serviu de base, de norte e de aio. Agradeço ao Eterno por ter me concedido tal mercê.

 

RR: Como você vivencia a transmissão de valores dentro da sua casa? Há ensinamentos dos seus pais que hoje você busca passar aos seus filhos?

CJ: Penso nisto todos os dias. Na verdade, em tudo que faço procuro repeti-los no seio familiar.

 

Por fim, o que você espera que permaneça de sua contribuição — não apenas como escritor ou historiador, mas como homem, cidadão e servo de Deus?

CJ: Anelo não ser pedra de tropeço. Espero ser, mesmo de forma pálida, um imitador do Cristo. Raquel, quem não vive para servir, não serve para viver.

Deuteronômio 16:19, serve como um lema para todo o que defende o ideal cristão: “Não pervertam a justiça nem mostrem parcialidade. Não aceitem suborno, pois o suborno cega até os sábios e distorce as palavras dos justos”.

 

 Entrevista publicada em 20 de maio de 2025.




 

A Vida e a Arte de Ronara Criola





A Vida e a Arte de Ronara Criola



 Por Raquel Rocha

A cantora Ronara Chagas Santos, conhecida com Ronara Criola, nasceu em Sapeaçu na Bahia mas hoje vive em Itacaré. Além de cantora é pedagoga e atua como professora. Ronara define sua carreira como cercada de altos e baixos. Ela começou cantando música popular se  apresentando em bares, casamentos e eventos particulares mas com o tempo foi encorajada a ousar nas composições autorias, participando de festivais e concursos que fomentam a música da cena independente. Ronara tem buscado novas influências de estilos musicais e adaptado seu trabalho sempre com a preocupação de não descaracterizar as raízes daquilo que acredito, que são as músicas de quilombos e terreiros.




Como a música surgiu em sua vida?


A musicalidade vem de família. Desde a infância participava das rezas na casa da sua avó materna ao som do violão do tio João e na adolescência em show de calouros nas quermesses da cidade. Já na fase adulta precisou dar uma pausa para atender a outras necessidades como estudos e formação familiar. Já com os filhos crescidos, retoma a música como trabalho, participa de formações musicais para se apresentar em barzinhos e shows pela região.


Quais foram suas principais influências?


O tio João foi a principal influência de casa por ser músico profissional e sempre nas horas vagas fazer questão da minha presença nas rodas de samba e seresta, o que me instrumentalizou. A nível nacional  minhas principais influências são as divas do samba Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Alcione, Beth Carvalho.


Quais as maiores dificuldades enfrentadas?


Alcançar mercado. As políticas públicas de fomento e formação na área da música na Bahia são escassas. Daí os artistas que querem seguir carreira profissional precisam sair para outros estados. Além do custo alto muitas vezes não há um devido preparo para disputar espaços já consolidados.


Quais as maiores vitórias?


Nossa, são vários pequenos momentos mas que me deixam muito feliz. Por exemplo, quando alguém diz que ouviu minha música tocando na rádio (mesmo ainda sendo na local). Outro exemplo foi um dia desses uma aluna me encontrou na rua e me abraçou dizendo “tia, lá em casa tem um vídeo seu. A gente gosta muito”.  Uma das maiores vitórias foi ter sido selecionada para o Mapa Musical da Bahia e entrar para a primeira coletânea do projeto em 2013. Daí em diante a crítica especializada começou a prestar atenção fora do eixo da capital.


Como você vê a valorização dos músicos na região?


Sinto que ainda temos muito o que avançar, principalmente quando se trata do interior. É necessário mais espaços para fomento, produção e circulação da música regional. Outra coisa que precisa mudar é o entendimento dos contratantes que insistem em não ver a música enquanto profissão e fazem propostas muitas vezes até desrespeitosa.


O que faria de novo e o que não faria na sua carreira?


Ahhh faria mais rodas de samba na casa da minha avó com tio João mas infelizmente eles já estão em outro plano. Profissionalmente falando enviaria novamente a minha primeira composição a uma artista que sou fã, (mas dessa vez entregaria em mãos rsrsr). Quanto ao que eu não faria, não aceitaria determinadas propostas.


Como seria viver sem a música?


Com certeza minha vida seria vazia. Apesar da arte ser ingrata, (porque só quem faz é quem sabe a dor e a delícia de viver de arte), viver sem a arte é como não ter alma. É o que me dá equilíbrio, alívio, alegria. Olhar de cima do palco e ver a plateia cantando junto comigo, é impagável.